Artigo

Infraestrutura verde e Infraestrutura cinza: autossuficiência hídrica

Publicado em: 27/09/2022

A utilização da infraestrutura verde e da infraestrutura cinza visando a autossuficiência hídrica tem sido um tema amplamente abordado por diversas organizações. As discussões normalmente consideram os benefícios e consequências da implementação de cada uma delas para o suprimento da demanda hídrica mundial.

Embora grande parte das correntes aponte para a superioridade da infraestrutura verde em relação à infraestrutura cinza, existem outras que indicam, no mínimo, a necessidade de equilíbrio entre as duas.

A Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, divulgou em 2018 a sua versão anual do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, no qual apontou que o equilíbrio na utilização das duas infraestruturas seria a melhor alternativa para a captação e uso da água.

Considerando as diferentes interpretações quanto ao uso e relevância das duas infraestruturas, neste artigo, vamos abordar o tema da autossuficiência hídrica com dois enfoques. O primeiro é o tradicional, que parte de tecnologias próprias das engenharias civil e mecânica e causa intensa intervenção humana no meio ambiente ao modificá-lo, e nele instalar obras e equipamentos.

O segundo enfoque, por sua vez, é o que parte da própria natureza, que usa de conhecimentos e tecnologias advindas da experiência humana e da engenharia ambiental, e foca na restauração e conservação de características físico-hídricas do meio ambiente para restabelecer e manter seus serviços naturais, no caso, muito especialmente, a produção de água e a sustentabilidade hídrica.

Desde a época da pedra até hoje, num processo contínuo e acumulativo, os seres humanos usam o conhecimento e a tecnologia anteriores na descoberta e na criação de novos conhecimentos e novas tecnologias. A capacidade de compreender a natureza e usar os conhecimentos adquiridos para criar tecnologia, e obter resultados práticos para seus interesses, é uma característica inata dos humanos.

Um dos subprodutos do uso da tecnologia humana é, desde sempre, a poluição. Ela está relacionada à rapidez com a qual a natureza é capaz de absorver os resíduos e restabelecer seu equilíbrio, e à diminuição ou esgotamento dos recursos naturais não renováveis envolvidos.

O conhecimento e a evolução tecnológica têm determinado e, ao mesmo tempo, são dependentes de dinâmicas sociais e econômicas. Grupos e interesses detêm conhecimento e tecnologia para exercer poder e obter vantagens pelo maior período de tempo possível. No caso da água, isso não é diferente.

Entendendo a Infraestrutura Cinza

Infraestrutura verde e Infraestrutura cinza são diferentes em diversos aspectos. Neste primeiro tópico, vamos apontar as principais características da Infraestrutura cinza.

Atualmente, conhecimento e tecnologia permitem a construção de estruturas enormes (represas, adutoras), máquinas complexas (bombas d’água, filtros, geradores de energia) e sistemas (captação, tratamento e distribuição de água, geração e distribuição de energia elétrica).

Essas construções ampliaram a capacidade humana de se estabelecer em grandes agrupamentos urbanos e criar padrões de consumo insustentáveis. Para tal, prevalece a noção de que tais estruturas são suficientes para captar e distribuir água em volumes enormes e trazem resultados rápidos.

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Infraestrutura cinza: ampliação da capacidade humana de se estabelecer em grandes agrupamentos urbanos trouxe padrões de consumo insustentáveis. Foto: Adobe Stock

Obras civis precisam de estudos prévios, projetos, licenças variadas, construção, períodos de pré-operação, entre outros processos. Por isso, podem demorar anos até começarem a funcionar. Normalmente, esse tempo não é computado porque uma vez operando, seu potencial de fornecer água será igual àquele que foi projetado.

Até pouco tempo, essa noção influenciou os hábitos do consumidor médio e, em especial, o consumidor urbano. Enquanto as Nações Unidas recomendam o consumo de 110 litros/dia por habitante, o consumo médio brasileiro é de 166,3 litros/dia. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o consumo médio é de 253,1 litros/habitante! Mesmo o Nordeste brasileiro, claramente uma região seca, tem consumo médio diário de 125,8 litros/dia[1].

Ocorre que, no Brasil, a água é tratada como se não tivesse o valor vital que tem, como se fosse infinita, haja vista que até hoje o valor cobrado pelas concessionárias de serviços de água se refere ao tratamento e fornecimento de água e à coleta e tratamento de esgoto.

O reflexo do uso indiscriminado da infraestrutura cinza

Nesse frenesi de crescimento, aglomeração e consumo, importantes componentes da infraestrutura natural do ciclo hidrológico foram impactados pela poluição e se tornaram inúteis, desapareceram ou foram esquecidos. Os resultados são óbvios. Rios sem vida aquática, mananciais contaminados, tempestades de proporções e intensidades nunca vistas, inundações, secas prolongadas, constante de desabastecimento, perda de lavouras etc.

Cerca de 80% dos municípios das regiões Centroeste, Sul e Sudeste do Brasil estão em bacias hidrográficas nas quais há intensa competição pelos diversos usos da água, seja consumo humano, agricultura ou produção industrial.

É o caso, por exemplo, da Região Metropolitana de São Paulo, que compreende 39 municípios, nos quais habitam 21,7 milhões de pessoas[2]. Nove sistemas integrados de abastecimento, operados pela Sabesp (Companhia de Saneamento do Estado de São Paulo), importam volumes colossais de água de bacias adjacentes, algumas com mais de 100 kms de distância do seu centro.

Está mais do que na hora de colocar luz sobre alguns conceitos que adotamos e sobre outros que entendemos estarem superados. É preciso promover a mudança dos paradigmas que os criaram e que impedem que sejam adotadas soluções de maior eficácia e menor impacto ambiental para acesso à água doce e de qualidade.

Novos conceitos em hidrologia e a produção de água

Não é segredo que é impossível criar água juntando dois átomos de hidrogênio a um átomo de oxigênio. Logo, a ideia de produção de água é controversa. Entretanto, podemos usar como exemplo o caso dos produtores/as de batatas, que não criam o arranjo molecular que as constitui, mesmo porque batatas existem desde muito antes da agricultura[3].

O que os/as produtores/as de batatas fazem é usar o conhecimento humano[4] para reunir elementos e executar ações que deflagram processos naturais e fazem a planta da batata crescer, para depois colhê-la e colocá-la à disposição do consumo humano.

Da mesma forma, esses/as produtores e produtoras podem reunir elementos e executar ações que permitam que processos naturais ocorram numa dada área, e uma quantidade maior de água fique retida para ser posteriormente captada, seja para uso na própria área onde foi captada ou em outra localidade.

Tais ações compreendem, dentre outras, recuperar a mata de topo de morro e executar práticas conservacionistas na meia encosta e nas áreas produtivas. Estas ações são destinadas a melhorar a capacidade de infiltração, percolação e recarga das águas subterrâneas e reter a água da bacia hidrográfica na qual a área se localiza, protegendo assim seus elementos hidrológicos. Qualquer produtor/a ou agricultor/a que tomar essas medidas será considerado/a “produtor/a de água”.

Batatas são plantas que, além de se reproduzirem naturalmente, podem ser clonadas ad infinitum e, logicamente, são um recurso natural renovável[5].

Reconhecer que a água doce é um recurso natural limitado, é óbvio. Adotar o conceito “produção de água”[3], tal como proposto, não implica negar que este é um recurso natural finito. Restringir o uso desse conceito é se submeter a uma tecnicidade acadêmica limitante, pois o mais importante, principalmente ao considerarmos a urgência de se adotar soluções sustentáveis de acesso a esse recurso, é que se dê conhecimentos práticos e se facilite a compreensão daqueles que estão no campo e que podem agir diretamente na questão.

Entendendo a Infraestrutura Verde

Considerando o uso da Infraestrutura verde e Infraestrutura cinza, também é necessário avaliar outro cenário. Precisamos enfrentar a noção de que os resultados da recuperação físico-hídrica de bacias hidrográficas e o uso de infraestrutura verde são soluções cujos resultados são de longo prazo, e beneficiarão apenas as futuras gerações. Isso não é verdade.

Principalmente dentro das empresas de abastecimento público e das empresas de engenharia, essa ideia ainda é um dogma que precisa ser desmascarado. São muitos interesses envolvidos, dado que grandes obras movimentam grandes quantidades de dinheiro, são visíveis e podem ser inauguradas e festejadas.

Já as práticas conservacionistas são discretas, espalhadas no território e no tempo; não são reluzentes e não demandam o volume de recursos sequer próximo ao dos recursos necessários para grandes obras.

Infraestrutura verde e Infraestrutura cinza Foto: infraestura verde Foto-Adobe-Stock
Infraestrutura verde: soluções baseadas na natureza podem favorecer o abastecimento de água. Foto: Adobe Stock

Muito pelo contrário, são intervenções baratas e que abrangem diferentes planos da paisagem – na mata de topo de morro, na meia encosta e no talvegue[6], são adequações na distribuição da ocupação do solo, como no manejo de culturas, e podem ser adotadas tanto em áreas urbanas quanto em áreas rurais.

Mais ainda, pela própria natureza e pela pluralidade de intervenções possíveis, as práticas conservacionistas apresentam resultados de curto prazo (ex. desassoreamento das nascentes), médio prazo (ex. terraceamento) e de longo prazo (ex. reflorestamento). Tratam-se de soluções sustentáveis, de reconstrução ambiental, de readequação do uso humano do meio ambiente.

Logicamente, essas intervenções não são causadoras de poluição e representam um reconhecimento de que a natureza é mais capaz de lidar com seus recursos do que o homem.

Descentralização da captação de água

Outro conceito que precisa ser explorado e difundido, quando abordamos a questão do uso da Infraestrutura verde e Infraestrutura cinza, é o da Descentralização da Captação de Água para Abastecimento Público apoiada na produção de água e no uso da infraestrutura verde.

Trata-se, em verdade, da estratégia de se reconhecer cada microbacia hidrográfica como sendo uma “Unidade de Produção de Água” e usar a infraestrutura verde para otimizar a produção de água em todas as microbacias possíveis dentro de uma dada região, município ou conjunto de unidades consumidoras e instalar estruturas de captação no exutório[7] dessas microbacias.

São inúmeras as vantagens desse modelo. Menor custo, menor impacto ambiental e diluição do risco de abastecimento em caso de contaminação de algum manancial causado, por exemplo, por um acidente de transporte rodoviário de carga perigosa ou pelo vazamento de produto poluente por uma unidade industrial.

Mas, talvez a maior vantagem seja que, no caso de diminuição sazonal da água produzida em uma determinada microbacia, um número maior de alternativas de captação de água estará à disposição para compensar a perda de produção da bacia afetada.

Infraestrutura verde e Infraestrutura cinza: intervenção transformadora X intervenção restauradora

Para além da questão do uso da Infraestrutura verde e Infraestrutura cinza, devemos considerar que a tecnologia da natureza é imbatível para cuidar dos recursos naturais.

Precisamos deixar de preciosismos acadêmicos e desmascarar interesses econômicos para aceitar soluções simples. Assim, permitir que o ciclo hídrico se reequilibre e siga nos fornecendo o elemento primordial para a vida: água pura e de qualidade.

Muitos novos conceitos precisam ser difundidos e adotados para que se possa promover o uso dos recursos hídricos de forma sustentável. Os que mencionamos neste artigo dão uma noção geral de duas abordagens profundamente diferentes: uma de intervenção transformadora, outra de intervenção restauradora e conservacionista.

Considerando que a água é um elemento essencial da natureza, a sustentabilidade e a autossuficiência hídrica só podem vir do correto uso desse recurso natural. Logo, reverter o enfoque tradicional, obtuso, que ignora seus próprios limites e os limites dos sistemas naturais requer romper paradigmas e abrir-se para ideias e concepções sustentáveis.

 

Texto elaborado por Maria Albuquerque,

fundadora e CEO da Synergia Consultoria Socioambiental,

com consultoria de Eduardo Azevedo de Arruda Sampaio.

 


[1] Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.

[2] Agência Nacional de Águas – Atlas Água e Abastecimento Urbano, 2021.

[3]   “Produção de água é a capacidade de uma unidade de área em captar, infiltrar e percolar a maior quantidade da água de precipitação possível e liberá-la (por meio das nascentes ou no fluxo de base), em sua maior parte, resultando em uma vazão, em toda a extensão do corpo d’água receptor, mais uniforme e em maior período de tempo possível”. Calheiros (2020).

[4] Antes do surgimento da agricultura humana, a aproximadamente 10.000 anos atrás, as batatas não eram domesticadas.  Os primeiros registros arqueológicos do cultivo de batata são de 8.000 anos atrás. https://www.smithsonianmag.com/history/how-the-potato-changed-the-world-108470605/

[5] Não obstante batatas produzam flores e sementes, a maioria dos produtores se aproveitam de sua capacidade de se propagar vegetativamente por meio de tubérculos.  A clonagem das plantas de batata é também útil para manter suas propriedades genéticas e fenotípicas, o que e permite sejam oferecidos produtos uniformes ao mercado.

[6] Talveque: linha de maior profundidade no leito de um curso d’água.

[7] Exutório: local de um curso d’água onde se dá todo o escoamento superficial gerado no interior de uma bacia hidrográfica.

6 – Água potável e saneamento
11 – Cidades e comunidades sustentáveis
12 – Consumo e produção sustentáveis

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